O Amor: uma história antiga na Constituição da República
Apolo andava muito envaidecido de seus dotes e façanhas, afinal, possuía os dons da medicina e da música, além disto, havia morto Píton, a serpente gigante, com uma das flechas que trazia em sua aljava. Ao terminar este prodígio, avistou Cupido, deus que se mantinha criança pela vida a fora e, naquele momento, polia suas lindas setas. Tomado pela soberba, Apolo disse-lhe: - As flechas não são brinquedo de meninos! São armas para os poderosos que, como eu, são capazes de matar até mesmo temíveis gigantes!
Cupido sentiu-se apequenado, injustiçado, afinal dedicava sua vida a flechar as pessoas, aos pares, para que se enxergassem mutuamente, se entregassem uma a outra e pudessem viver o amor, em plenitude. Usava flechas de ouro, finíssimas e de pontas ainda mais finas para não causar dores em seus alvos. Tinham a divina missão de encher os pensamentos de sonhos, aguçar a sensibilidade das pessoas para que percebessem o colorido das flores, o afago da brisa, dentre outras belezuras da vida, enfim: espalhar esperança e felicidade pelo mundo.
Apolo relegara a função de unir, através do amor, a um patamar inferior, a arrogância lhe dizia que ter sido capaz de matar a serpente mostrava o quanto ele era poderoso, viril, sentiu-se mais orgulhoso deste feito do que de seu próprio dom de curar as pessoas através da medicina.
Cupido estava inconformado com o desprezo e decidiu encontrar um meio de mostrar, ao seu egocêntrico companheiro do Olimpo, o valor do amor. Neste instante, viu, ao longe, a linda Dafne que bailava distraída na beira do rio. Sacou de sua aljava uma seta diferente, com ponta de chumbo arredondada, e disparou-a sobre o corpo da ninfa. O disparo foi certeiro, atingiu o coração de Dafne exatamente no ponto de confluência das linhas do amor, rompeu o laço que as unia e espalhou-as. Pesada e de difícil penetração, a seta rasgou a pele e os músculos, fez sangrar o coração da ninfa, mas Cupido instantaneamente a curou com seu olhar amoroso. Ela não percebeu a alteração que se operara em si, a flecha divina lhe era invisível, mas cumprira seu destino.
Em seguida, Cupido atirou, sobre o corpo de Apolo, uma de suas leves flechas de ouro de finíssima ponta. O deus sequer notou que havia sido atingido por ela, mas, imediatamente, seus olhos enxergaram Dafne e sua beleza irresistível. Foi, de imediato, tomado pelo sentimento de bem-estar, admiração, desejo, propósito de proteção, dedicação e paciência, queria aninhá-la em seu colo. Dirigiu-se à Dafne para dizer-lhe o que sentia, mas foi, surpreendentemente, repelido por ela. A ponta de chumbo havia produzido seu efeito, Dafne havia se tornado incapaz de receber e dar amor.
Apolo insistiu, seguiu a ninfa pedindo-lhe que recebesse seu amor. A recusa foi implacável e Dafne começou a correr para afastar-se, mas Apolo a seguiu, quando estava prestes a ser alcançada, a ninfa pediu a seu pai que lhe mudasse forma, não era capaz de amar e ser amada. Para respeitar-lhe a vontade, seu pai o rio-deus Pneu, a transformou em um belíssimo loureiro, de abundante folhagem, tronco rígido, coberto de vigorosas cascas e raízes profundas ficadas à margem da correnteza do rio seu pai.
Desolado com a escolha feita por Dafne, Apolo adotou as folhas de louro como adorno para sua cabeça e para sua aljava, dedicou-se aos trabalhos da medicina com inteiro devotamento à cura das pessoas, agora conseguia enxergar a beleza que vivia em cada uma delas e tratava de preservá-la.
Ao final do dia, cansado de distribuir tantos bálsamos medicinais para curar os seres humanos, se recostava no tronco do loureiro, sob sua sombra, dedilhava lindos sons em sua harpa encantada e entoava belíssimas canções de amor. Sua música enternecia de tal modo a quem ouvia que até as nuvens choravam. Apolo tentou aplacar o amor que ardia em seu coração aplicando em si mesmo seus bálsamos medicinais, nenhum funcionou. Desistiu e dizem que a cada dia que se recostava no loureiro para tocar harpa o deus estava mais belo, gentil e sua música ainda mais encantadora.
O resultado evolutivo, mais atual, da tentativa de mantença da fruição do amor fraternal na civilização humana é o sistema normativo constitucional, ele cria o Estado e organiza a convivência humana. A Constituição é um ajuste de interesses para preservação e fomento da fraternidade humana, da liberdade, e dos deveres de desenvolvimento nacional. Se organiza sob a forma de conjunto de competências e atribuições, fundadas na Justiça, dignidade e trabalho para o desenvolvimento humano e do país.
O amor fraternal se expressa positivamente, na Constituição Brasileira, através destes princípios e se constitui em objetivo de Estado, força normativa de agregação político/social. Impositivamente, deve inspirar o funcionamento do Estado, afeta os agentes públicos e os cidadãos. A Constituição recebe cada membro do grupamento social como parte indivisível do todo e, simultaneamente, garante a liberdade individual, fixando os limites de seu exercício para possibilitar a auto realização no ambiente do Estado.
Os deveres de desenvolvimento nacional e promoção do bem de todos, indicam a direção de todo movimento do Estado, os demais objetivos, indicados no artigo 3º da Constituição de 1988, são meios a serem seguidos para alcance destas duas finalidades. São o ponto de convergência de todas as linhas de trabalho público e de exercício da cidadania, simultaneamente, são os valores inspiradores do amor fraternal sobre o agir público. É por causa deles que os agentes públicos, têm o dever de ação fundada no plano de promoção do bem de todos, artigos 1º e 3º da Constituição.
Os Objetivos de Estado se impõem às interpretações normativas, que fundamentam as decisões judiciais e as vinculam ao dever de não contradição com o texto literal das normas Constitucionais e à ordem sistêmica do direito posto. Outrossim, se impõem sobre a atividade administrativa Estatal cujos atos somente são validados pela Constituição se estiverem vinculados à promoção do desenvolvimento individual e coletivo planejado e esquematizado pelo sistema normativo.
As Constituições precisam especificar quais são os valores normativos referenciais do amor fraterno, para construção de um Estado mais seguro do que o Estado de direito, o Estado Humano, porque os instintos humanos só habilitam o homem para uma convivência social de pequeno número de pessoas. Para que o amor fraternal seja possível em grupos muito numerosos a legislação precisa criar condições e orientações fundadas nos comportamentos aprendidos ancestralmente.
O amor instintivo existe no ser humano, hoje, com o mesmo formato em que ocorreu nos grupamentos humanos originais, restrito a um pequeno número de pessoas. O amor fraternal extensivo a todos os seres humanos só é possível através da aprendizagem. Talvez seja este o fundamento da fala de Cora Coralina de que “bondade também se aprende”.
Os grupos humanos iniciais do paleolítico possuíam um chefe em quem os integrantes tinham plena confiança, porque compartilhavam com ele os instantes do dia-a-dia e testemunhavam seu propósito de condução do grupo à realização do bem de todos. A convivência física diária dos membros do grupo, unidos em razão de trabalhos específicos do interesse de todos, como a alimentação, por exemplo, era o testemunho pessoal da cooperação de cada um para o bem comum. Este ambiente era propício para o florescimento do amor recíproco e legitimação das decisões do chefe.
As restrições comportamentais abstratas foram sendo aprendidas ao longo do tempo com a ampliação do número de integrantes destes grupos e com a necessidade de inter-relação entre eles. A premência era de que, nesta conjuntura, alguém desgarrado do grupo não sobreviveria. Foi o conjunto de aprendizados pontuais, casuísticos, que formou a cultura, possibilitou a civilização humana e formou a noção de moralidade. A moralidade que vivemos hoje é um comportamento aprendido pelos nossos ancestrais e transmitidos ao longo das gerações.
Ocorre que os grupos aumentaram muito o número de integrantes, e isto provocou duas rupturas fundamentais que afetam a fruição instintiva do amor recíproco nos ajuntamentos humanos: primeiro, a perda de objetivos concretos específicos comuns que a todos vincule com a mesma potência e, segundo, a impossibilidade de convívio físico, diário, entre todos os integrantes do grupo. Este é mesmo o ponto em que a flecha de chumbo de ponta arredondada de Cupido rompe o laço e desagrega todas as linhas do amor instintivo, tal como fez em Dafne.
A falta de objetivos concretos específicos, pontuais, diários e prementes, continuadamente comuns, diminui a solidariedade. Diminui também o tempo de partilha dos instantes da vida, de convivência física. O afastamento físico enfraquece a confiança no outro porque se perde o testemunho do dia a dia.
As constituições atuais têm a função de criar vínculos para suprir o distanciamento social interno provocado pela perda de objetivos comuns e perda de convivência diária entre os integrantes dos grupos humanos. Para manter a agregação sócio/política do grupo à Constituição traça um plano e esquematiza o modo de agir no ambiente do Estado através dos fundamentos e objetivos de Estado. Estes buscam reforçar o aprendizado do amor fraternal, garantir que seja extensivo a todos os cidadãos, em especial a quem não se conhece pessoalmente.
Para suprir a quebra de confiança, que nascia espontaneamente do testemunho diário das ações do outro e legitimava a ações e decisões do chefe do grupo, cria-se, no Estado constitucional, o dever de ação estatal inteiramente vinculada aos objetivos de Estado, nomeadamente aos objetivos de desenvolvimento nacional e de promoção do bem de todos. A Constituição reforça essa busca de confiança com a instituição de penalidades para quem descumprir estes deveres.
Para que esta ordem Constitucional funcione como agente agregador e de fruição do amor fraterno, exige, como pressuposto, a credibilidade na força vinculante do comportamento aprendido, através da informação, ancestral, de que prosperam os grupos que vivenciam a honestidade e a lealdade.
Os objetivos de Estado só garantem a fruição do amor fraternal na sociedade se os seres humanos que interagem no ambiente público tiverem realmente aprendido a lição da História de que a prosperidade se ergue sobre a verdade, lealdade e a vinculação espontânea à realização do bem de todos. Sem esta disposição interna do ser humano, os objetivos de Estado não conseguem atar as linhas do amor fraterno que se revelam através dos objetivos de Estado.
Como os integrantes da sociedade atual não partilham os instantes de seu dia a dia com os decisores e agentes do Estado, sua confiança, neles, depende da credibilidade de que se movem sobre o propósito de promoção do desenvolvimento nacional e da promoção do bem de todos. Os pontos convergentes das linhas de amor fraterno, na Constituição, destinam à agregação sócio/política.
Ocorre que quando os resultados da atuação pública não se refletem em melhoria concreta, visível, vivenciável, praticamente, pelo grupo, a confiança da população na vinculação das autoridades públicas, ao dever funcional de cumprimento dos objetivos de Estado, desaparece. Sem confiança, o amor não floresce, suas linhas não se encontram para formar laço, a agregação social é impossível.
A falta de confiança na força vinculante dos objetivos de Estado, sobre a atividade dos agentes públicos e a imobilidade no curso de desenvolvimento sócio/político/econômico, retiram a legitimidade dos decisores políticos. A ineficiência dos decisores públicos em dar efetividade aos objetivos estatais quebra a confiança nos agentes do Estado e, como confiança é condição para fruição do amor fraternal no ambiente do Estado, a tendência de desagregação se impõe.
A desconfiança sobre a vinculação, das ações dos Poderes públicos, aos objetivos fundamentais do Estado, equivale à soltura das linhas de amor no coração de Dafne. O desastre sobre a capacidade constitucional de dirigir o grupo humano ao crescimento e bem-estar é inevitável. Talvez, relembrar os valores, aprendidos ancestralmente, de caridade humana, honestidade e lealdade, que informaram a prosperidade dos grupos humanos iniciais, seja um sinal da direção a seguir.
Apolo, mesmo sendo o deus da medicina, não encontrou bálsamo capaz de aplacar o amor, porque amor não é enfermidade, é, em si, o mais poderoso bálsamo, a medicina maior, a cura da vaidade da arrogância que apequenavam o deus. O testemunho de Dafne revela que doença é a falta de amor, é ela que enrijece, aprisiona, imobiliza, mesmo que o rio da vida corra vivamente a seus pés, quem não é capaz de amar, igualmente, não é capaz de mergulhar, de navegar sobre ele.
É possível que esta mesma lógica se aplique à quebra de confiança porque, talvez, o empenho de maior força no cumprimento dos objetivos do Estado, incondicionalmente, não represente prejuízo para os interesses individuais ou grupais, talvez seja, de fato, a solução que traz os melhores benefícios para todos. Nesse tempo presente, de tantos Apolos orgulhosos do poder de matar serpentes, tempos de linhas de amor despregadas por setas de chumbo, de tantos enrijecimentos e imobilidades causados pelo desfazimento do laço destas linhas, tempos em que os objetivos fundamentais do Estado são tão aviltados pelos interesses individuais, penso que precisamos desesperadamente de amantes.
Precisamos dos Apolos alvejados pelas flechas de ouro, a curar as pessoas com seus bálsamos medicinais, a tocar harpa, entoar canções de amor capazes comover o mundo. Tomara que sua linda cantoria comova também Cupido, e o faça reatar as linhas da confiança rompidas no coração da Constituição da República, pela atuação indevida na atividade pública. Oxalá o deus faça, com elas, um lindo laço de amor fraterno, afinal, o povo brasileiro não merece a mesma desdita do deus da medicina: amar sem ser amado.
Deus nos ajude!
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