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Direito natural, direito à vida e aborto


Direito natural, direito à vida e aborto

Introdução

Falar em direito natural implica na aceitação de que, em razão da própria natureza humana, há bens/atributos inerentes à própria ideia de pessoa. Os bens pertencentes à pessoa por tomar parte no seu ser (vida, liberdade, intimidade, etc.) geram para os outros o dever de respeito.

Negar o direito natural, segundo HERVADA, é negar ao homem seu caráter de pessoa, o positivismo parte da ideia de que o homem é apenas um membro da espécie ou coletividade, a qual atribui alguns direitos sem outra base que não o consenso social, que é expresso através da lei. Esta negação implica em admitir que, antes da lei positiva em impossível a existência do direito e da justiça, pois todo o direito seria criação legislativa. No entanto, é impossível que assim seja, pois a juridicidade é um dado natural que serve de fundamentação à atividade legislativa.

Logo, os direitos do homem preexistem ao direito positivo, estruturantes da sociedade, diretivos para os governos, alcançando caráter constitucional, e definidos, por isso mesmo, como direitos fundamentais.

Não há como entender o direito, a justiça, a obrigação, sem referência à pessoa – fundamento do próprio direito. Em virtude da condição ontológica que é própria da pessoa, que se pode falar em algo justo, injusto, devido ou não devido. O domínio ontológico que pessoa exerce se orienta à obtenção dos fins a que está naturalmente ordenada.

Para HERVADA, pessoa em sentido jurídico e pessoa em sentido ontológico são conceitos que guardam identidade, mais que isso, o primeiro conceito está contido no segundo. A condição ontológica de pessoa inclui a subjetividade jurídica, de modo que o conceito jurídico de pessoa não é outra coisa que o próprio conceito de pessoa no sentido ontológico – o conceito jurídico de pessoa manifesta o jurídico do ser humano.

Postas estas premissas, buscar-se-á, no presente trabalho, estabelecer, através do direito natural, fundamentos para a defesa do direito fundamental à vida, especificamente diante do aborto. Para tanto, inicia-se por uma breve abordagem a respeito do embrião ou feto, sua caracterização do ponto de vista biológico, visando situar sua condição ontológica de ser humano; na sequência, busca-se determinar fundamentos que podem ser extraídos do direito natural para fundamentação do direito à vida; e, após, seguem-se observações finais, à guisa de conclusões.


O embrião

Embora se afirme que o embrião ainda não é uma pessoa humana, no sentido pleno da expressão, como também não é o recém-nascido ou a criança antes do uso da razão, é inegável que se trata de um “vivente” humano, eis que sua vida está programada para ser humana e desenvolver-se como tal.

Nas palavras de JUNGES:

“… pode-se dizer que o embrião, desde o primeiro momento, tem personeidade (estruturas antropológicas para tornar-se pessoa), mas ainda não pessoalidade (as estruturas ainda não foram levadas à expressão quanto ao sujeito). Em outras palavras, já estruturalmente pessoa, embora não o seja atualizadamente, porque a estrutura pessoal ainda não se desenvolveu plenamente, mas está programado para isso.”

SERRÃO aponta três concepções principais no que se refere ao embrião humano: a primeira, similar à posição de JUNGES, no sentido de que se trata de um membro da família humana na primeira fase do seu ciclo vital e que chegará ao estado de pessoa; a segunda indicando que se trata apenas de um pouco de tecido, um aglomerado de células; e, por fim, a terceira, apontando que, satisfeitas determinadas condições, pode se desenvolver até ser humano, merecendo proteção de acordo com a fase de desenvolvimento em que se encontre.

Consoante JUNGES, a defesa do respeito absoluto ao embrião não está no fato de ser pessoa, pois para tanto lhe faltariam requisitos, mas na sua “ascrição” ao gênero humano, na solidariedade ontológica de todos os seres humanos.

Sobre “ascrição”, esclarece LEPARGNEUR:

“’Pessoa’, resumidamente, é o indivíduo consciente, dotado de corpo, razão e vontade, autônomo e responsável. Salientamos a autonomia da pessoa como sujeito moral, porque aqui enxerta-se toda a tradição kantiana, ainda hoje importante na dinâmica do desenvolvimento da conscientização dos direitos humanos. É óbvio que, nem o embrião, nem sequer o feto, nem o louco que perdeu, de vez, o uso da razão e do juízo, nem o comatoso em fase final, responde a esta definição da pessoa. Então a pergunta é: em virtude de que podemos atribuir dignidade pessoal a estes seres que não se enquadram na definição comum e admitida de pessoa? A resposta da ciência atual é: pela ‘ascrição’, isto é, pela atribuição de certa dignidade pessoal, outorgada criteriosamente, a seres que julgamos merecedores dela, pela proximidade que intuímos desfrutar conosco, apesar de eles não satisfazerem os critérios da definição clássica da pessoa, sujeito racional, livrem autônomo e responsável. A ‘ascrição’ não resulta de uma decisão individual, mas de um juízo comunitário, cultural (do ethos), que admite o mais ou menos, porque toda participação admite o mais ou menos.”

A solidariedade ontológica dos seres humanos se baseia na identidade de espécie, ou seja, seres humanos são gerados por seres humanos sexualmente diferenciados, havendo uma herança genética, relacional e cultural, a ser preservada e atualizada, que imbrica uma dívida de cada ser humano com os seus semelhantes. Dívida esta que aponta para o fato de que o desrespeito ao semelhante é desrespeito a si mesmo.

A seu turno, a genética moderna veio a demonstrar que todas as células somáticas (como o próprio nome dá conta, constituem o “soma”, o corpo), sem nenhuma exceção, possuem o mesmo genótipo, têm a mesma informação genética. Assim, qualquer célula humana contém todo o DNA responsável pelo desenvolvimento do ser humano.

Comprovado que o genótipo presente nas células somáticas é o mesmo presente no zigoto, evidencia-se não existirem diferenças de conteúdo genético entre o recém-concebido e o adulto, o que vem em reforço da referida identidade ontológica existente entre os seres humanos.

A posição de LEJEUNE é ainda mais incisiva, no mesmo sentido, v.g.: “No princípio do ser há uma mensagem, essa mensagem contém a vida e essa mensagem é a vida. E se essa mensagem é uma mensagem humana, essa vida é uma vida humana.”

De outro lado, há entendimentos em frontal antagonismo com o exposto, como se pode ver pelas posições expressas por SINGER, v.g.:

“Se considerarmos ‘humano’ equivalente a ‘pessoa’, então a segunda premissa do argumento, que afirma que o feto é um ser humano, é claramente falsa, pois ninguém poderá argumentar, de forma plausível, que o feto seja racional ou autoconsciente. Se, por outro lado, o significado de ‘humano’ for apenas ‘membro da espécie Homo sapiens’, então a defesa conservadora da vida do feto se baseia numa característica desprovida de significação moral e, assim sendo, a primeira premissa é falsa. A questão já deveria a essa altura parecer-nos familiar: em si mesmo, o fato de um indivíduo ser, ou não, um membro da nossa espécie, não é mais relevante, diante do erro de matá-lo, do que o fato de ser ele, ou não, um membro de nossa raça.”

Em relação a ser o feto um ser humano em potencialidade, SINGER oferece exemplos que afastariam essa possibilidade, tais como: “arrancar uma muda de carvalho recém brotada não é o mesmo que abater um venerável carvalho secular. Jogar uma galinha viva dentro de uma panela de água fervendo seria muito pior do que fazer a mesma coisa com um ovo.”

Conforme AZEVEDO, Warnock estabeleceu distinção entre seres agentes ou responsáveis pela moralidade e os seres beneficiários desta, sendo que, considerados pessoas apenas os primeiros, isso implica que por pessoas seriam considerados aqueles que desenvolveram maturidade suficiente para serem responsáveis por seus atos e pelos demais; considerados, ao revés, os segundos, a questão está em definir se há diferenças de valor moral, ou não, entre eles.

Do exposto, caracteriza-se o embrião, o feto, como um ser humano, uma vez que é gerado por pais humanos, possui genoma completo, funcionando como organismo integrado à mãe, exibindo, após o nascimento, comportamentos físicos típicos de um recém-nascido.

O DNA humano, o genoma humano, identifica uma pessoa pertencente ao gênero humano e, portanto, constitui um signo “característico” e irredutível de humanidade, o que leva à adoção de medidas tendentes à proteção da dignidade do próprio genoma humano, inclusive através da Declaração Universal sobre o Genoma Humano. Ante estas ponderações, estariam afastadas eventuais dúvidas sobre o caráter de pessoa humana do ser que habita o ventre materno.


O direito natural e a defesa da vida

Quando se faz referência ao direito à vida, está se falando em direito à vida humana, portanto, refere-se a direito à vida pertencente aos membros da espécie humana, portanto, trata-se de pessoas.

Aceito o fato de que todo ser humano é pessoa, é consequência lógica que esta têm direitos decorrentes dessa condição, ou seja, direitos humanos, dentre os quais se encontra, como o mais importante, o direito à vida. Somente os seres humanos, pela sua natureza são sujeitos desses direitos, que, por sua vez, encontram seu fundamento na dignidade da pessoa.

Por óbvio, trata-se de uma realidade preexistente ao reconhecimento destes direitos, anterior, portanto, à sua positivação. Tem-se consciência da dignidade da pessoa, que não pode ser tratada de forma arbitrária, etc. pois é, objetivamente, um ser digno e portador de direitos decorrentes dessa dignidade, que são reconhecidos, mas não outorgados pela sociedade.

O fundamento do direito à vida, da sua inviolabilidade, reside na dignidade da pessoa, que é própria do homem (de todo e de cada um), própria da sua natureza.

A natureza do homem diz também com sua racionalidade, pela qual se compreende que a ação humana é dirigida à consecução de fins, fins naturais do homem, que abrangem a sua realização, sendo que o primeiro princípio que a racionalidade prática dita ao homem é aquele que provém da apreensão da natureza do bem.

O termo dignidade está ligado, remotamente, ao termo grego “axioma”, que designa os pontos de partida absolutos, os axiomas gregos em latim passaram a ser designados “dignitates”, não seno surpreendente que Tomás de Aquino manifeste-se no sentido de que dignidade significa a bondade de alguma coisa por si mesma, a sublime bondade que corresponde ao absoluto, a sublime modalidade do bom.

Como consequência, Tomás de Aquino estabelece como primeiro princípio, do qual derivam os demais, “fazer bem e evitar o mal”. Assim o bem tem natureza de fim, ou seja é o fim ao qual se inclina o homem.

Tomás de Aquino distingue as tendências naturais do homem em três grupos: as próprias de todo o ser, as que compartilha com os animais e as propriamente racionais; identificam-se, respectivamente, com a conservação do seu próprio ser, com a tendência de preservação da espécie e a tendência a conhecer a verdade a respeito de Deus e a viver em sociedade.

Assim, no caso do direito à vida, poder-se-ia dizer que é um bem para o homem a conservação da vida e não é bem atentar contra ela.

Para defender o direito à vida, Tomás de Aquino, portanto, em oposição ao homicídio, ao aborto, etc., argumenta que a razão natural dita ao homem que não faça injustiça a ninguém, portanto os preceitos que proíbem causar danos dizem respeito a todos.

A partir do princípio primeiro – se deve fazer o bem e evitar o mal – é o mesmo de que parte a Nova Escola de Direito Natural, especialmente JOHN FINNIS, que considera que o direito das pessoas se fundamentam nos denominados “valores básicos”, que se referem a aspectos fundamentais do bem estar dos homens. Esses valores básicos são as formas básicas de realização humana plena como bens que devem ser buscados e realizados. Esses valores básicos são bens que aperfeiçoam o homem e lhe conservam vivendo em sociedade e resguardam sua dignidade.

Esses bens básicos seriam: a vida; o conhecimento; o jogo; a experiência estética; a amizade,; a racionalidade prática; e a religião. Estes são bens em si mesmos, não meios, não supõem uma hierarquia entre si, sendo moral aquela ação que contribui para o desenvolvimento destes valores, cujo reconhecimento da validade moral é consensual, o que leva a uma análise do homem em sua integralidade e numa perspectiva de sua integração social.

Para alcançar tais bens, evidentemente, tem-se precípua a vida, ou seja, a existência do próprio ser. Trata-se, portanto do bem fundamental, necessário para uma autêntica realização do ser humano. Disso se pode concluir que o respeito à vida humana não pode basear-se somente na inclinação natural à sua preservação, mas, o fundamento desse direito e consequente reconhecimento dever correlato, está ligado à consideração da dignidade da pessoa.

De outro lado, o bem vida não pode servir de meio para outros fins, ou seja, nenhum bem pode ser alcançado mercê do sacrifício de um ser humano. São a dignidade da pessoa e o somatório de todos os bens que levam à realização do ser humano, que estabelecem o dever absoluto do respeito ao bem básico humano – a vida.

Sobre o tema, reproduz-se parte do voto de JULIO S. NAZARENO, Ministro da Corte Suprema Argentina, em julgamento de um caso de pedido de autorização de aborto de um feto considerado anencefálico;

“En lo que respecta al sub judice el derecho de la madre a obtener la paz a la que aspira debe integrarse correlativamente com el de la persona por nacer pues esa es la regla hermenéutica a la que corresponde atenerse toda vez que ‘El cumplimiento del deber de cada uno es exigencia del derecho de todos. Derechos y deberes se integran correlativamente en toda actividad social y política del hombre... Los deberes de orden jurídico, presuponen otros, de orden moral, que los apoyan conceptualmente y los fundamentan’ (conf. Preámbulo de la Declaración Americana de los Derechos del Hombre). Es que, com acierto expressa Ihering ‘Nadie existe sólo para sí, como tampoco por si sólo; cada uno existe por y para los otros, sea intencionadamente o no ... La vida es una respiración incesante: aspiración, espiración; esto es tan exacto como la vida física, en la intelectual. Exisitir para outro, com reciprocidad casi siempre, constituye todo el comercio de la vida humana. La mujer existe para el hombre, y éste a su vez para la mujer; los padres existen para los hijos; y éstos para aquéllos’ (von Ihering, Rudolf ‘El fin en el derecho’, Bibliográfica Omeba, Buenos Aires, 1960, pág. 40 ver el punto ‘La vida en sociedad: cada uno por los otros y para los otros’). Los conceptos expuestos no tienen outro propósito que el de dar respuesta a las posiciones de las partes determinando que no existe un derecho absoluto e incausado a la propria determinación o a la autorización de una medida tan extrema como la que aquí se solicita, máxime cuando ni siquiera se han acreditado los supuestos de hecho que la tornarian procedente desde el próprio punto de vista de la amparista.”

Tem-se, pois, inadmissível qualquer desrespeito à vida, em qualquer estágio de desenvolvimento ou circunstância, pois este bem humano é uma norma moral, de direito natural, que não admite exceção. Pois os preceitos da lei natural movem os homens no sentido de respeitar e promover o bem em si mesmo e no outro.

Para FINNIS, o reconhecimento deste e de outros bens básicos humanos são identificados nos direitos humanos, que são direitos baseados em bens intrínsecos da pessoa humana e que representam a expressão clara da justiça numa coletividade.


Conclusão

O problema de nossos dias é que, cada vez mais e das mais diversas formas se tem ameaçado o direito à vida, especialmente no que diz com a vida do nascituro. Há uma prodigalidade na edição de legislações que atentam contra a vida desde os momentos iniciais da gestação.

Nesse aspecto, o direito natural tem assinalado o caráter incondicionado do direito à vida, em especial do nascituro, e do dever de respeito a esse direito, pois uma sociedade só pode ser considerada justa e democrática quando respeita e reconhece os direitos humanos, especialmente o mais básico deles, que é o direito à vida, classificando-o como direito humano por excelência.

No caso específico do Brasil, é necessário levar em conta a ordem constitucional vigente que impede a aprovação de legislação que permita o aborto, embora existam projetos de lei tramitando no Congresso Nacional com este objetivo.

A Constituição Federal no art. 5º, caput, assegura a inviolabilidade do direito à vida, e, mais, o §3º, do mesmo artigo, declarou que os tratados internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados pelo Congresso Nacional, equivalem a emendas constitucionais, ou seja, são parte da Carta Magna, inserindo-se, pois, como direitos e garantias fundamentais, aquelas tratadas nos referidos tratados.

O art. 60, §4º, inc. IV, da Constituição Federal do Brasil prevê que não será objeto de deliberação proposta tendente a abolir direitos e garantias fundamentais, as chamadas Cláusulas Pétreas. O Brasil é signatário do Pacto de São José, cujo art. 4º, assegura que toda a pessoa tem direito à vida, sendo este direito protegido pela lei desde a concepção. Portanto, ante o Pacto de São José da Costa Rica, combinado com os termos constitucionais, não é possível o aborto. Claro, pois, que projetos de lei permitindo ou descriminalizando o aborto ferem a ordem constitucional, pois violam direito fundamental – a vida.

No Estado Constitucional, os valores que a sociedade tem por relevantes são assumidos pela Constituição, refletindo as suas convicções. Os valores mais altos, do ponto de vista ético e moral, são aqueles reconhecidos pela Carta Magna, que os alçou à condição de princípios fundamentais que irão informar toda a legislação nacional, não podendo ser contrariados ou desrespeitados.

O direito à vida, como direito fundamental, é garantido a todo ser humano, desde a concepção até a morte, portanto, assegurado também ao nascituro (tanto que o próprio Código Civil Brasileiro, em vigor, em seus artigos 2º e 4º, garante seus direitos desde a concepção).

Não há, portanto, espaço para a legalização do aborto, que é verdadeira pena de morte ao nascituro, especialmente em face do que dispõe a Constituição Federal Brasileira, o Pacto de São José da Costa Rica e o Código Civil.


Artigo publicado na Revista Conhecimento & Cidadania Vol. I N.º 09 - ISSN 2764-3867



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