As virtudes do equilíbrio
O poeta paraibano Evan do Carmo certa vez disse: “Quer saber quem são os homens, lhes apresentem uma disputa polarizada… Não conseguem ficar calados, hão de escolher uma das duas opções medíocres...”.
A polarização, em qualquer discussão atual, demonstra que a grande maioria das pessoas enxerga o mundo somente em formas extremas: preto ou branco!
Entendemos que foram nesses extremos que o poeta enxergou a mediocridade.
Muitos esquecem-se que o mundo e as relações humanas, por toda a sua complexidade, tem mais tons de cinza do que pode uma impressora laser identificar.
Os contornos políticos mundiais mais recentes fizeram aflorar não somente a polarização política, mas a conceitual, que envolve, evidentemente, balizas mais complexas e que, na grande maioria das vezes, estão alheias ao conhecimento do polarizado.
A pandemia de coronavírus, por sua vez, não somente potencializou as diferenças dantes já existentes, quanto criou uma nova: a polarização da ciência ideológica.
Esse monstro criado pelos pseudo defensores da ciência, que muitas vezes sequer sabem como se forma o conhecimento científico, passou a orientar políticas públicas e tratamentos médicos em relação ao coronavírus.
Atualmente, se se defende o isolamento social completo ou mesmo a aplicação do bloqueio total de circulação (lockdown), você está a favor da “ciência”. Se nega a efetividade de referido procedimento, você é negacionista.
Aquele que usa máscara está cumprindo as determinações das organizações que embasam suas orientações em premissas “científicas”, enquanto o que se nega é um pária da sociedade, que está colocando em risco toda a comunidade que lhe circunda.
Quem defende a utilização de determinado tratamento off label (uso de medicação para finalidade diversa da constante em sua bula) está colocando em risco as pessoas ante a possibilidade de efeitos colaterais, enquanto aqueles que refutam referida possibilidade – mesmo que, na premente necessidade, pessoalmente façam a utilização da medicação contraindicada - estão defendendo a saúde da população.
Esquecem-se os defensores desta ou daquela orientação que, como dantes já mencionado, o campo cinzento é imensamente maior do que as conclusões rotuladas.
Concentremo-nos na questão do isolamento social.
O fato de alguém discordar da efetividade do isolamento social ou mesmo defender a manutenção de um mínimo de normalidade nas atividades comerciais e sociais automaticamente o faz ser tachado de negacionista, como se tais atitudes demonstrassem que o defensor deste posicionamento negasse não somente a gravidade da doença, como sua própria existência.
Nada mais imbecil.
O isolamento social é uma medida indicada ante o desconhecimento de outra realmente eficaz e é – isso é fato pacífico – eminentemente temporária, pois serve para somente diluir no tempo a velocidade da infecção, o famoso “achatamento da curva do contágio”. Por mais que baseie-se em premissas científicas – ainda que discutíveis, não serve o isolamento para prevenir a doença, mas somente para postergar a sua contração.
Portanto, dizer que a contrariedade ao isolamento é uma negativa de gravidade da situação é somente um argumento de autoridade para desviar a atenção da ausência de justificativas concretas para a mantença temporalmente indefinida de uma situação que, em sua gênese, deveria ter uma leve temporalidade.
Apesar de já ter me manifestado indiretamente contra as medidas de isolamento de forma genérica e sem critérios, confesso que nas atuais circunstâncias e passada a inicial fase da pandemia, filio-me ao posicionamento de que as medidas de isolamento não atingiram o seu intento e, portanto, devem ser revistas imediatamente.
Antes do leitor acusar o articulista de negacionista, remeto-o às conclusões do psicólogo alemão Gerd Gigerenzer em sua obra “Reckoning with Risk” (sem tradução para o português): 1) a ciência nunca apresenta certezas, apenas probabilidades; 2) quando se fala em porcentagens, deve-se mostrá-las da forma mais simples possível, para evitar o engano.
A ciência é um campo do conhecimento não somente dinâmico, quanto de posicionamentos não unânimes.
E não está isenta de equívocos! Até pouco tempo atrás considerava-se que a vida tinha geração espontânea (abiogênese), fato que fora refutado pelos experimentos de Louis Pasteur. Muitos ainda acreditam que só usamos 10% de nossa capacidade cerebral, enquanto há inúmeras pessoas que acreditam que água conduz eletricidade (o que é condutor em um ambiente aquoso são os sais e impurezas). Se não bastasse, em pleno Século XXI, ainda existem pessoas que defendem que a terra é plana.
Diante de tal cenário, mister demonstrar alguma concretude:
A primeira é de que, por mais grave que a pandemia de coronavírus possa parecer, grande parte da humanidade está longe de ter qualquer complicação com a doença.
No momento em que este artigo é escrito, fontes retiradas da rede mundial de computadores, entre elas a Wikipedia (pode criticar a fonte, mas confio mais nela do que na Organização Mundial da Saúde), indicavam a ocorrência de aproximadamente 6 milhões de mortes causadas pela pandemia em todo o mundo. Isso equivale à pouco mais de 0,075% da população mundial. Considerando que desde o início da pandemia até o momento atual morreram – estimativamente - no mundo, mais de 140 milhões de pessoas, o número de mortos pela Covid-19 é menos do que 5% desse quantitativo.
Ou seja, você tem mais de 95% de chance de morrer por qualquer outra causa, do que por coronavírus. E detalhe: quanto mais o tempo passa, mais arrefece a pandemia, de forma que o percentual citado tende a subir rapidamente.
O fato de não concordar com o isolamento, reprise-se, não faz deste articulista um negacionista.
Temos consciência da agressividade do contágio da doença, do percentual de complicações que ela pode causar, das deficiências históricas dos sistemas de saúde nacionais e de grande parte do Globo e, principalmente, solidarizamo-nos imensamente com àqueles que tiveram pessoas queridas perdidas para a doença.
No entanto, os números demonstram que as reações à doença, como os bloqueios já mencionados, são totalmente desproporcionais, para não dizer inócuos.
A discussão poderia até ser aprofundada se estivéssemos diante de um quadro que demonstrasse que se o indivíduo ficasse isolado estaria inerte à doença, enquanto o indivíduo exposto seria contaminado.
Mas, novamente, números confiáveis demonstram o contrário.
Ficara conhecido (apesar de não muito divulgado ou discutido) o discurso do Governador do Estado de Nova York/EUA, Andrew Cuomo, demonstrando que numa análise de mais de 1000 pacientes internados nos mais de 100 hospitais locais, 66% dos que contraíram a doença estavam em casa. Ressalte-se que tal discurso ocorrera no início da pandemia nos Estados Unidos, quando o Estado de Nova York vivia um quase completo lockdown.
Pode-se questionar se realmente tais pessoas estavam em casa. Porém, as próprias estatísticas demonstram que um grande percentual dessas pessoas eram aposentadas e de idade avançada, o que corrobora o fato de que não estavam elas laborando em serviços essenciais.
Soma-se a isso que 18% dos contaminados eram pessoas vulneráveis que encontravam-se em casas de repouso – ou seja, não estavam nas ruas, do que se conclui que 82% dos contaminados estavam em isolamento social, contra 18% dos que não aderiram ao isolamento (incluindo nesse grupo o 1% de presos, que estavam em isolamento cogente).
Por mais que não seja possível comparar qual a probabilidade de contágio da pessoa isolada daquela que não está, eis que não temos - para efeitos de parâmetro - o número total de pessoas isoladas, os dados demonstram cabalmente que o isolamento social da forma proposta atualmente não evita, em nada, o contágio.
E não é só isso: o isolamento social, com o argumento de cientificidade alegado, seria útil se realmente houvesse, literalmente, isolamento. No entanto, o isolamento na atual sociedade e com as configurações demográficas mundiais mostrar-se-ia efetiva somente a grupos sem contato com outros grupos populacionais.
Nas cidades – independentemente de seu tamanho – o isolamento domiciliar não ilide o contato social, eis que necessário é ao “isolado” alimentar-se, adquirir medicamentos, buscar compras na porta de casa, dentre outros. Isso para não falar dos ambientes compartilhados, como elevadores de prédios e corredores de aglomerados urbanos.
Soma-se a tudo isso a concreta indicação de que o vírus é transmissível pelo ar.
Até comunidades indígenas brasileiras já foram contaminadas, pela frequência com que seus integrantes têm que se dirigir às cidades próximas para a aquisição de bens de consumo.
Portanto, vemos que o isolamento somente seria efetivo com a elisão de qualquer contato humano direto, por mínimo que seja, o que é impossível à maioria esmagadora da população mundial.
Justamente por tais nuances que o argumento basilar do isolamento social não se sustenta, pois a diminuição da velocidade do contágio somente seria possível se realmente cessassem-se vertiginosamente os contatos humanos.
A experiência da cidade de Nova York, populosa e demograficamente concentrada que é, nos mostra que o isolamento na forma mundialmente proposta simplesmente fracassou.
E, em relação ao referido fracasso, sequer estamos entrando na seara dos prejuízos econômicos e sociais advindos do isolamento social, tema este que, por si só, mereceria um grande compêndio.
O fato é que, à favor ou contra o isolamento, temos inúmeras teorias, um sem número de posicionamentos técnicos e um grande manancial de dados. Porém, destes dados, pouquíssimos são aptos para fins comparativos, o que torna a questão ainda mais tormentosa.
Justamente pela incerteza, temos que a adoção, enquanto opção pessoal, do isolamento ou não, depende da forma como o indivíduo enxerga os riscos.
Frise-se que não estamos aqui a defender a desobediência civil nos moldes delineados por Henry David Thoreau, eis que mesmo discorde do isolamento, este articulista está a cumprir todas as determinações das autoridades, justamente por filiar-se ao entendimento de que o descumprimento da regra, ainda que entendida como inconstitucional, pode levar à consequências mais gravosas para a segurança jurídica do que o seu discorde cumprimento. Há campos de batalha específicos para discutir-se a regularidade ou não, bem como a própria conveniência, de determinada norma.
Porém, o ponto a ser discutido é se a maioria da sociedade, mesmo ciente dos riscos biológicos envolvidos com a não adoção do isolamento, estaria disposta a sofrer as consequências desse posicionamento.
Para responder a isso, necessário se faz antes fazermos alguns comentários e comparativos.
Há certas virtudes humanas cuja demonstração somente é passível de ocorrer em situações adversas. A coragem é uma delas.
Não quero induzir o leitor a achar que entendemos que o adepto do distanciamento social é um covarde, enquanto o discordante é o corajoso. Longe disso. Até porque, como defendemos até aqui, a situação não insere-se no método “8 ou 80”.
O que estamos a narrar é que a maioria das pessoas que não são adeptas ao distanciamento social da forma proposta, mas que tem consciência das consequências de seu posicionamento – excluídos os puramente irresponsáveis, que sequer tem noção da amplitude de suas decisões (um grande contingente de pessoas, diga-se passagem) – simplesmente defendem o retorno à normalidade pois aderiram conscientemente ao risco que isso pode causar, e estão dispostos a assumir as consequências.
Não se trata de mitigar as consequências da doença ou mesmo negar a sua existência, mas enfrentá-la como qualquer outra causa que pode evoluir de forma negativa.
O incauto desacorde de referido posicionamento pode indagar à título de discussão: mas você sacrificaria em ente amado em nome de sua liberdade por um pequeno período de tempo? A resposta é, evidentemente, não! Não estamos aqui a especificar uma linha direta de causa e consequência, mas sim um estudo de probabilidades. Se a pergunta fosse se você aceitaria a probabilidade de um ente querido ou mesmo você sucumbir à doença, certamente a resposta seria diferente, pela pura análise dos percentuais de expectativa da real ocorrência do evento danoso.
Ora, há tempos morrem por ano, em razão de acidentes de trânsito, uma média de 40 mil pessoas no Brasil. Diferentemente de uma pandemia, tais números tendem a se manter, para não dizer aumentar. A pandemia, por outro lado, é temporalmente definida (ainda que não de forma específica), o que demonstra que, mesmo se não for encontrada uma vacina eficaz (não, infelizmente ela ainda não existe), ainda conviveremos com o coronavírus pelos próximos anos, porém chegará ele a um termo.
Se considerarmos que uma pessoa com 70 (setenta) anos de idade tem o potencial de vivenciar 2 milhões e 800 mil mortes no trânsito (só no Brasil) durante a sua vida, fica claro que a probabilidade deste indivíduo padecer de coronavírus é imensamente menor do que de falecer em decorrência de um acidente de trânsito. E isso é somente uma causa, pois existem não somente outras várias como mais virtualmente ofensivas, como as doenças cardiovasculares, que são a maior causa de morte no mundo todo (só esse ano, referida causa já ceifou a vida de mais de 70 mil brasileiros).
Nem por isso há pessoas defendendo a cessação do uso de veículos. Há, no entanto, inúmeras medidas tendentes à diminuir referidos números, como investimentos em educação de trânsito e uma efetiva fiscalização de condutas potencialmente lesivas.
Porque essa mesma premissa não pode ser adotada em casos de pandemia: conscientização de medidas efetivas (e não somente supostas) de higiene e fiscalização efetiva de materialização dessas medidas em todos os campos da sociedade.
O complicado da polarização é que os extremos tendem a ver somente o seu posicionamento como sendo o correto e adequado.
Ora, o indivíduo que é adepto do distanciamento social, em regra, não precisa de qualquer ato normativo para assim agir.
Resumidamente: se você quer ficar em casa, não ter contato com ninguém e não quer frequentar qualquer ambiente onde supostamente há um nicho de potencial contágio viral, ninguém pode te obrigar ao contrário. O Estado Democrático de Direito, ainda que com alguns problemas, assim o permite.
Portanto, se alguém entende que o distanciamento social (ou enclausuramento domiciliar) é o melhor caminho a ser seguido durante a pandemia, temos uma ótima notícia: você é livre para agir dessa forma.
Para isso, basta sopesar as vantagens e consequências desse posicionamento. Se não é possível ao indivíduo trabalhar em casa, mas é a favor do isolamento, basta procurar um emprego que assim o permita.
Se realmente o distanciamento social for a melhor opção, o indivíduo que resolver trancar-se em casa estará protegido, independentemente do número de contaminados no ambiente externo. Não é essa a justificativa para o isolamento, do grupo que o defende?
Porém, não podem os adeptos deste entendimento querer obrigar toda uma coletividade a assim agir, principalmente se considerarmos que uma potencial grande maioria discorda.
Justamente por isso filiamo-nos à impossibilidade de obrigatoriedade do distanciamento, pois somente com a ausência de cogência em relação a um ou outro posicionamento é possível que o indivíduo, na utilização de sua plena liberdade, possa escolher o caminho que melhor lhe convier, sopesando não somente as intempéries biológicas, quanto as consequências econômicas e sociais de sua atitude.
Se não vivenciarmos, no futuro, uma polarização da história como frequentemente ocorre, mas pudermos verificar com dados reais e contabilizáveis as nuances reais da pandemia, evidentemente que encontraremos resposta para muitas das atuais perguntas.
Artigo publicado na Revista Conhecimento & Cidadania Vol. I N.º 07 - ISSN 2764-3867
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